Exercício físico e Fibrose Cística

Instituto Unidos pela Vida - 13/03/2016 20:11

exercicio1Texto escrito por Rodrigo Gonzaga Troyack de Lima, Professor de Educação Física (CREF – 018056 G/RJ), Especialista em Fisiologia do Exercício, Ciências da Atividade Física e Msc. em Ciências da Atividade Física.

As pessoas com fibrose cística, bem como seus familiares, têm muitas dúvidas sobre atividade física e a doença. Os maiores receios são de que a atividade física pode agravar os sintomas e provocar exacerbações mais intensas. Se ao invés disso, o exercício físico pode atenuar estes sintomas e diminuir a intensidade e frequência das exacerbações. Se as complicações do trato respiratório, provocada pela fisiopatologia básica da doença, podem de alguma maneira limitar o desempenho durante a prática de exercícios físicos ou esportes. Como percebemos que essas são dúvidas muito comuns, decidimos esclarecê-las através deste texto, abordando todos os aspectos do exercício físico e traçando um panorama mais atualizado possível sobre os efeitos do mesmo no tratamento da fibrose cística.   
A fibrose cística é uma doença genética, com uma característica autossômica recessiva, que atinge predominantemente a população branca, em comparação a outras populações. As manifestações clássicas da doença incluem doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), insuficiência pancreática, e acúmulo excessivo de eletrólitos no suor, além de infertilidade masculina.
Como sabemos, a doença é provocada por uma mutação em um gene chamado CFTR que codifica a proteína de mesmo nome. São conhecidas mais de 1.900 mutações diferentes no gene CFTR, e essas são agrupadas em classes conforme o efeito que têm sobre a tradução ou sobre as outras etapas do processamento da proteína até chegar a membrana celular, onde a proteína sem a mutação deveria funcionar como um canal de íon cloreto.
exercicio2O curso evolutivo da doença leva a uma acentuada deterioração dos pulmões, a hipertensão pulmonar e o consequente comprometimento da função respiratória. Esse quadro progressivo afeta especialmente o consumo máximo de oxigênio (VO2Máx), o indicador fisiológico de referência para a capacidade cardiorrespiratória, o volume expiratório forçado em um segundo (FEV1), indicador clínico poderoso de expectativa de vida e taxa de sobrevivência, e a capacidade vital forçada (CVF) que é o volume máximo de ar que e exalado com esforço máximo, a partir de uma inspiração máxima.
Este fato fica mais evidente quando se observa os valores mais baixos de VO2Máx (28,6 ± 4,2 ml/kg/min e 31,7 ± 5,4 ml/kg/min) apresentados pelos pacientes com mutações dos tipos I e II respectivamente, comparados aos valores (43,9 ± 6,4 ml/kg/min) daqueles com mutações do tipo III ou IV.
Alguns estudos indicam que valores de % VO2Máx baixos (≤ 58) apresentam correlação negativa com a expectativa de vida, e estão fortemente associados com baixas taxas de sobrevivência dos pacientes com fibrose cística. Vários estudos indicam que % de FEV1 predito baixos (≤ 50) estão negativamente associados com a expectativa de vida, e que valores % FEV1 predito < 30 indicam um alto risco de óbito de adultos.
 
Além de comprometer a função respiratória, com a progressiva redução do VO2Máx e do FEV1, de alguma maneira a fibrose cística afeta a força muscular, pois produz um quadro de desnutrição e perda de massa muscular provocado pela obstrução dos canalículos pancreáticos por tampões mucosos. A obstrução impede a secreção de enzimas para o duodeno, implicando em má digestão e má absorção de proteínas, gorduras e carboidratos. O tecido muscular apresenta em sua composição 70 a 73% de água, e 27 a 30% de proteínas aproximadamente, por isso qualquer alteração metabólica que implique má absorção de proteínas levará a um quadro de desnutrição proteica, e consequentemente baixos índices de força muscular.
exercicio3Mas como o exercício físico pode ajudar no tratamento da fibrose cística?
O primeiro estudo sobre o papel do exercício físico no tratamento a fibrose cística, realizado no ano de 1971, já revelava que a limitação de desempenho físico na fibrose cística se devia exclusivamente a mecânica pulmonar (ventilação), especificamente o aumento do espaço morto. Portanto, indicava que eventuais aumentos na ventilação pulmonar produzem benefícios diretos na função pulmonar, e consequentemente na melhora dos sintomas da doença.
Dos anos 80 até a presente data, inúmeros estudos científicos sobre exercícios físicos e fibrose cística foram realizados, com resultados bastante promissores e interessantes. Estes estudos revelaram que o exercício físico aeróbico regular (1) ajuda a eliminar o muco nos pulmões em função do aumento das vibrações e da ventilação pulmonar-VE, (2) desobstrui  e limpa as vias aéreas, (3) reduz a lesão inflamatória no tecido pulmonar, (4) ajuda no fortalecimento da musculatura respiratória, (5) ajuda a regular os canais de sódio – Na+, inibindo a entrada do mesmo no trato respiratório, o que estimula o aumento do conteúdo de água no muco pulmonar e leva a uma maior depuração do muco e redução de sua viscosidade.
Os estudos sobre os efeitos fisiológicos do exercício aeróbico regular indicam que o mesmo aumenta de forma significativa o VO2Máx, o FEV1, a VE e a CVF. Os resultados podem ser observados com apenas 3 sessões semanais, a partir de 8 a 12 semanas de treinamento, e causam impacto positivo sobretudo na qualidade de vida e na taxa de sobrevivência, pois a medida em que aumentamos estes indicadores clínicos, especialmente VO2Máx e FEV1, aumentamos a expectativa de vida dos pacientes com fibrose cística.
Os estudos de revisão de literatura e meta-análise apontam que o exercício físico aeróbico regular (1) mobiliza o muco e aumenta o transporte mucociliar para fora do epitélio pulmonar; (2) ajuda a produzir níveis satisfatórios de condicionamento cardiorrespiratório e de força, mantendo uma boa aptidão para o exercício e as atividades da vida diária; (3) mantém uma mobilidade normal, especialmente da região torácica, ajudando na depuração e limpeza do muco pulmonar; (4) previne a osteoporose associada a fibrose cística e a inatividade física; (5) aumenta a autoconfiança.
Além dos efeitos benéficos do exercício aeróbico regular, já descritos acima, parece que o treinamento de força muscular pode ajudar e muito os pacientes com fibrose cística. O treinamento de força produz micro-lesões na estrutura e nas células do tecido muscular, que iniciam um processo inflamatório. Esse processo inflamatório, uma vez iniciado, ativa uma série de sinalizadores biológicos que se comunicam com hormônios específicos, como testosterona e hormônio do crescimento, que regulam e ativam as vias nucleares de síntese proteica que começa um processo de codificação e transcrição de aminoácidos em moléculas de proteína, que irão recuperar as micro-lesões e induzir os músculos a aumentarem de tamanho. A síntese proteica produz ganho de massa muscular, o que reverte o quadro de desnutrição proteica e baixo peso.
Por outro lado, considerando algum mecanismo fisiológico que ainda não está totalmente explicado, parece que o treinamento de força muscular ajuda a melhorar a função pulmonar também. O treinamento de força regular para grandes grupos musculares, realizado 2 a 3 vezes por semana, aumenta a CVF, diminui o volume residual-VR (aprisionamento de ar nos pulmões após uma expiração máxima) e diminui a razão VR/CVF.
As recomendações dos principais órgãos de pesquisa para exercício aeróbico incluem treinamento contínuo de moderada a alta intensidade (MCT), com o acúmulo de pelo menos 150 minutos semanais, distribuídos com frequência mínima de 5 dias por semana, com duração mínima de 30 min. A intensidade preconizada está entre 40-55 a 85% do VO2R (VO2 de reserva), com o VO2R representando a diferença entre o VO2Máx e o VO2 repouso (3,5 ml de O2/kg/min). As recomendações também sugerem a variação do exercício aeróbico com o método intervalado de alta intensidade e curta duração (HIIT), com o acúmulo semanal de pelo menos 75 min de atividade vigorosamente intensa (VO2Máx ≥ 90%), distribuída em frequência mínima de  3 dias por semana, com duração mínima de 20 min.
O método HIIT é uma alternativa bastante viável e prática de exercício aeróbico, pois demanda pouco tempo por sessão e pode ser feito em qualquer lugar. O método consiste em treinamento intervalado com intervalos de alta intensidade e curta duração (VO2Máx ≥ 90%), intercalados com intervalos de baixa intensidade e maior duração (VO2Máx ≥ 40-65%). O objetivo do método HIIT é estimular a via anaeróbica de produção de energia durante o período de esforço máximo (intervalo ativo), e estimular a via aeróbica de produção de energia durante o período de recuperação (intervalo recuperador). Um exemplo clássico de HIIT são sessões de treino com 30 s de intervalo ativo, e até 4 min de intervalo recuperador, mas de maneira geral uma relação de trabalho média de até 1:3 (proporção entre o tempo de duração do intervalo ativo e recuperador) costuma ser bastante aceita e indicada na literatura científica, além de bem tolerada pela maioria dos indivíduos, mesmo os com fibrose cística.
exercicio4O método HIIT parece ser mais eficiente que o método MCT no controle da resposta inflamatória no tecido pumonar. Alguns estudos revelaram que o método HIIT reduziu significativamente a concentração de algumas citocinas pró-inflamatórias, como IL-6 e TNF-α, em comparação ao método MCT. Como a diminuição do processo inflamatório do tecido pulmonar é um dos objetivos principais do tratamento da fibrose cística, a adoção do esquema de treinamento HIIT pode ser uma boa alternativa, pois reduz a resposta inflamatória devido a curta duração das sessões de treino.
Para o treinamento de fora muscular, as recomendações indicam uma carga entre 6 e 12RM, velocidade de contração muscular moderada (1-2 s fase concêntrica, 1-2 s fase excêntrica), 1 a 2 min de intervalo de recuperação entre séries. A frequência mínima semanal recomendada é de 2 a 3 dias para iniciantes, 3 a 4 dias para intermediários e 4 a 5 dias para indivíduos avançados, e um esquema com séries múltiplas, aplicado a grandes grupos musculares através de exercícios multiarticulares, para otimizar o processo de síntese de proteínas e aumento (hipertrofia) da massa muscular.
 
Mas há algum caso em que o exercício é contraindicado?
Pacientes que tem problemas de saturação têm medo de sentir falta de ar durante o exercício. É interessante notar mesmo em sessões de reabilitação realizadas em pacientes com indicação para transplante pulmonar que o exercício não só é recomendável, como praticamente obrigatório. Então, se mesmo em uma situação tão grave como na necessidade de um transplante é possível fazer exercícios, como pode ser possível o exercício físico estar contraindicado em pessoas com uma condição próxima a normal?
exercicio5Sobre o exercício físico para pacientes transplantados, ou com indicação de transplante, alguns estudos com um grupo de pacientes que recebeu transplante de coração e outro grupo que estava em uma lista de espera para transplante pulmonar indicaram que mesmo em sua modalidade mais vigorosa e extenuante, o HIIT, o exercício físico era bem tolerado e produzia aumentos significativos nos indicadores clínicos de sobrevivência como VO2Máx, FEV1 e na dispneia (falta de ar) em comparação ao MCT, podendo ser realizado normalmente.
Há cuidados que devem ser tomados, como o acompanhamento da saturação de oxigênio e dos batimentos cardíacos em situações específicas e a reposição de eletrólitos durante as sessões mais intensas ou realizadas em dias mais quentes, como falamos no texto específico sobre hiponatremia (link).
Mas a verdade é que a literatura nos diz que o exercício está contraindicado em apena duas situações, as quais aqui se faz uma observação e advertência: em caso de infecção o paciente deve interromper o programa de exercício físico, até que esteja absolutamente assintomático por pelo menos 1 dia, ou seja a infecção tenha sido curada. Também se recomenda a interrupção nos casos de exacerbação dos sintomas de asma, até que os mesmos tenham cessado por completo. Somente após isso, recomenda-se a gradual retomada do programa de exercícios físicos.
Por fim, devemos nos lembrar que as principais organizações de pesquisa sobre exercício físico e fibrose cística recomendam a adoção de um programa de exercícios físicos, que inclua o treinamento aeróbico e o treinamento de força, supervisionados e elaborados por um profissional de educação física capacitado para a prática dessa função.
 
Então o que você está esperando? Não perca mais tempo, faça uma avaliação detalhada com a equipe médica que o acompanha, procure um educador físico qualificado e comece a praticar exercícios físicos. Incorpore estes novos hábitos a sua rotina de tratamento. Você vai observar rapidamente as mudanças e melhorias na sua qualidade de vida e indicadores clínicos da doença, além da sua autoconfiança e aí não vai mais querer parar. Pelo contrário, vai quere enfrentar desafios maiores!
Pense nisso, avalie bem a situação e todas as informações apresentadas neste texto, e faça suas escolhas! E lembre-se: o exercício físico é a melhor e mais sábia escolha que você pode fazer no tratamento da fibrose cística!
Referências:
ACSM. Progression models in resistance training for healthy adults. Medicine and Science in Sports and Exercise, vol. 41, n. 3, p. 687-708, 2009.
ACSM. Quantity and quality of exercise for developing and maintaining cardiorespiratory, musculoskeletal and neuromotor fitness in apparently healthy adults: guidance for prescribing exercise. Medicine and Science in Sports and Exercise, vol. 43, n. 7, p. 1334-1359, 2011.
CHAVES, C.R.M.M.; OLIVEIRA, C.Q.; BRITTO, J.A.A. et al. Exercício aeróbico, treinamento de força muscular e testes de aptidão física para adolescentes com fibrose cística: revisão de literatura. Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil, vol. 7, n. 3, p. 245-250, jul./set., 2007.
DALL, C.H.; SNOER, M.; CHRISTENSEN, S. et al. Effect of high-intensity interval traning versus moderate training on peak oxygen uptake and chronotropic response in heart transplant recipientes: a rondomized crossover trial. American Journal of Transplantation, vol. 14, p. 2391-2399, 2014.
FIRMIDA, M.C.; MARQUES, B.L.; COSTA, C.H. Fisiopatologia e manifestações clínicas da fibrose cística. Revista do Hospital Universitário Pedro Ernesto UERJ, ano 10, p. 46-58, out./dez., 2011.
FIRMIDA, M.C.; LOPES, A.J. Aspectos epidemiológicos da fibrose cística. Revista do Hospital Universitário Pedro Ernesto UERJ, ano 10, p. 12-22, out./dez., 2011.
GLOECKL, R.; HALLE, M.; KENN, K. Interval versus continuous training in lung transplant candidates: a randomized trial. The Journal of Heart and Lung Transplantation, vol. 31, p. 934-941, 2012.
GRACIA, J.; MATA, F.; ÁLVAREZ, A. et al. Genotype-phenotype correlation for pulmonary function for cystic fibrosis. Thorax, vol. 60, p. 558-563, 2005.
GODFREY, S.; MEARNS, M. Pulmonary function and response to exercise in cystic fibrosis. Archives of Disease in Childhood, vol. 46, p. 144-151, 1971.
MOORCROFT, A.J.; DODD, M.E.; WEEB, A.K. Exercise testing and prognosis in adult cystic fibrosis. Thorax, vol. 52, p.291-293, 1997.
NGUYEN, T.; OBEID, J.; PLOEGER, H.E. et al. Inflammatory and growth factor response to continuous and intermittent exercise in youth with cystic fibrosis. Journal of Cystic Fibrosis, vol. 11, p. 108-118, 2012.
NIXON, P.A.; ORENSTEIN. D.M.; KELSEY, S.F. et al. The prognostic value of exercise testing in patients with cystic fibrosis. New England Journal of Medicine, vol. 327, p. 1785-1788, 1992.
NYTRØEN, K.; RUSTAD, L.A.; AUKRUST, P. et al. High-intensity interval training improves peak oxygen uptake and muscular exercise capacity in heart transplant recipientes. American Journal of Transplantation, vol. 12, p. 3134-3142, 2012.
ORENSTEIN, D.M.; FRANKLIN, B.A.; DOERSHUK, C.F. et al. Exercise conditioning and cardiopulmonary fitness in cystic fibrosis: the effects of a three-month supervised running program. Chest, vol. 80, n. 4, p. 392-398, 1981.
PEDERSEN, B.K.; SALGTIN, B. Exercise as medicine – evidence for prescribing exercise as therapy in 26 different chronic diseases. Scandinavian Journal of Medicine and Science in Sports, vol. 25(suppl. 3): 1-72, 2015.
SELVADURAI, H.C.; McKAY, K.O.; BLIMKIE, C.J. et al. The relationship between genotype and exercise tolerance in children with cystic fibrosis. American Journal of Respiratory Critical Care Medicine, vol. 165,
p. 762-765, 2002.
STRAUSS, G.D.; OSHER, A.; WANG, C.I. et al. Variable weight training in cystic fibrosis. Chest, vol. 92, n. 2, p. 273-276, 1987.
SWISHER, A.K.; HEBESTREIT, H.; MEJIA-DOWNS, A. et al. Exercise and habitual physical activity for people with cystic fibrosis: expert consensus, evidence-based guide for advising patients. Cardiopulmonary Physical Therapy, vol. 00, p. 1-14, 2015.
Atenção: as informações deste texto têm cunho estritamente educacional. Em hipótese alguma pretendem substituir a consulta médica, a realização de exames e ou, o tratamento médico. Em caso de dúvidas fale com sua equipe multidisciplinar, eles poderão esclarecer todas as suas perguntas!
 

Fale conosco