Conitec propõe o estabelecimento de “teto” para custos relacionados à incorporação de tecnologias em saúde. Quais os prejuízos disso?
Comunicação IUPV - 27/07/2022 11:24Por Marise Basso Amaral, Verônica Stasiak Bednarczuk de Oliveira, Cristiano Silveira, Natalie Alves Lima e Rafael Rossi
Recentemente, a Conitec publicou a Consulta Pública nº 41 a fim de receber opiniões sobre o uso de limiares de custo-efetividade nas decisões de incorporação de tecnologias no SUS. Por intermédio da participação social, o órgão visa promover discussões em relação aos parâmetros de custo-efetividade nas decisões tomadas para a incorporação de tecnologias no SUS.
O custo-efetividade representa uma medida de desempenho/eficiência das tecnologias em saúde. Relaciona-se, portanto, o custo da tecnologia e o benefício auferido em sua utilização. Por isso é que a preocupação maior, durante o processo de Avaliação da Tecnologia em Saúde (ATS), deve se pautar pelo aumento do tempo de vida, com qualidade, para aqueles com doenças graves, raras e ultrarraras.
A partir do documento produzido pela Conitec, por meio da necessidade de dar transparência às decisões de ATS por imposição prevista na Lei 14.313/2022, vê-se a clara tentativa de impor um teto de gastos para o valor de referência do custo-efetividade em 1 PIB/per capita que, em 2021, representava R$ 40,6 mil. Há um sério problema nas conclusões desse documento relacionado à semântica, pois dado momento, emprega-se a frase “situações coerentes com a hipótese de limiares alternativos”. Não fica claro que essas situações se referem precisamente às hipóteses descritas no tópico anterior (doenças raras e graves).
Entretanto, a partir de uma interpretação da própria Conitec, é possível concluir que o limite de 3 PIB/per capita se aplica para doenças que atingem crianças, as graves, as raras e as endêmicas em populações de baixa renda com poucas alternativas terapêuticas. Houve, somente, exceção para tecnologias avançadas (terapias gênicas ou curativas) ou indicadas em doenças ultrarraras (1 caso a cada 50.000 pessoas), as quais o órgão afirma que serão pautadas em critérios específicos, a serem definidos em ocasião futura, sem mencionar quando.
O posicionamento indicado pela Conitec é grave, já que os tratamentos dispensados aos cuidados das pessoas acometidas por doenças raras costumam ser de alto custo e extrapolam o limite imposto de 3 vezes o PIB/per capita.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), as tecnologias em saúde compõem um elemento primordial dos sistemas de saúde e devem ter segurança, eficácia e custo-efetividade confirmados, e o seu uso deve estar balizado em evidências científicas de qualidade. Entretanto, o uso de limiar baseado no PIB/per capita deixou de ser recomendado pela OMS em 2016, por considerar que tal critério não detém sozinho as especificidades exigidas para o processo de tomada de decisões, podendo promover decisões equivocadas de alocação de recursos.
Por isso, causa espanto que o documento produzido ignora por completo a recomendação da OMS. Além disso, é impensável que esse seja critério suficiente para barrar a incorporação de determinados medicamentos. Outros critérios precisam e devem ser analisados. Diante da oscilação que o PIB está suscetível, é crucial que a Conitec não limite os parâmetros de custo-efetividade a essa métrica para que, diante de determinadas circunstâncias concretas, possa incorporar tecnologias em saúde que não fiquem adstritos a esse limiar.
Não se pode ignorar a necessidade de planejamento na incorporação e no uso de tecnologias em saúde observando os impactos orçamentários, contudo, a utilização de um limiar de custo-efetividade para esta decisão é definitivamente contestável na literatura e nos países que adotam modelos de saúde semelhantes. Aliás, o Brasil não adota esse limiar de custo efetividade que agora pretende-se estabelecer.
Não é admissível que o direito à saúde e o direito à vida possam ser limitados dessa maneira, sob pena de subversão das normas constitucionais vigentes, clara ofensa aos princípios da dignidade humana, bem como os da saúde, universalidade, equidade e integralidade.
Independente do resultado da CP nº 41, sempre que pacientes com doenças graves, raras e ultrarraras, necessitarem do auxílio estatal, independentemente do fato de que eventual recomendação tenha sido desfavorável à incorporação de tecnologias no SUS, haverá a possibilidade de o cidadão recorrer ao Poder Judiciário para resguardar o direito à saúde.
Não se pode perder de vista que o Poder Judiciário leva em consideração que esse direito é dever do Estado sem, contudo, deixar de analisar a capacidade econômica dos entes federados, assim como as prioridades de gastos. Entretanto, é evidente que o Poder Judiciário também avalia, na tomada de suas decisões, o desacerto entre as políticas públicas prestadas pelo Estado e o atendimento ao cidadão, especialmente quando apurada a inércia dos órgãos e a perspectiva de lesão grave, mesmo que apenas para um único cidadão.
Também é correto dizer que o Judiciário busca estabelecer critérios para garantir a disponibilização de terapias que somente são acessíveis por meio da intervenção judicial, envolvendo questões relativas ao direito à saúde, especialmente no caso de medicamentos. Alguns desses parâmetros tangenciam a:
- Identificação de que a não prestação dos serviços em saúde decorre de uma omissão legislativa ou administrativa, de decisão administrativa negando o fornecimento do tratamento ou se há alguma vedação à dispensação da terapia;
- Aprovação da ANVISA para que o tratamento seja disponibilizado, pois se trata do órgão competente para atestar a segurança e eficácia do produto. Por certo, existem exceções à regra e, caso alguém se encontre nesse contexto, deverá buscar auxílio de profissional do direito com atuação na área de saúde;
- Prioridade no tratamento ofertado pelo SUS em detrimento de outro escolhido pelo paciente, quando a ineficácia ou impropriedade da terapia fornecida não for comprovada e;
- Impossibilidade de o Estado ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais, exceto se comprovado a mora irrazoável na apreciação do pedido de registro.
Dito isso, reafirma-se a garantia prevista na Constituição ao dispor que nem mesmo a lei é capaz de excluir da apreciação, pelo Poder Judiciário, a lesão ou ameaça ao direito, de modo que, observando-se alguns critérios, haverá a possibilidade de obrigar o Estado ao fornecimento de tratamento e eventos em saúde, ainda que estes não tenham sido incorporados pelo SUS por recomendação da Conitec.
A afirmação encontra respaldo nas recentes decisões proferidas pelo Poder Judiciário, a exemplo de dois julgamentos no Rio Grande do Sul . Em ambos os casos discutia-se o fornecimento do medicamento pembrolizumabe para tratamento de câncer de pele. Havia, por ocasião, parecer contrário emitido pela Conitec para a incorporação do medicamento, sob o argumento de que, embora fosse mais eficaz se comparado com as demais drogas e terapias utilizadas no tratamento dessa doença, não era custo-efetiva. Os acórdãos decidiram que, mesmo diante do alto custo do medicamento, o Estado deveria fornecê-lo, superando a barreira econômica alegada pela Conitec.
Ressalta-se que, embora o Poder Público forneça o medicamento dacarbazina para a tratamento para câncer de pele em situações semelhantes, o próprio SUS, por intermédio da diretriz diagnóstica e terapêutica indica a ineficiência desse remédio.
Portanto, é necessário que sejam estabelecidos limiares para incorporação de tecnologias em saúde pelo SUS, mas não se pode admitir que os critérios sejam rígidos e inflexíveis, nem que estejam restritos a uma ótica de custo, devendo-se acolher, nas hipóteses de doenças raras, a possibilidade de superação do limite de até 3 PIB/per capita, eis que, mantido tal posicionamento, haverá o real potencial de causar danos substanciais aos cidadãos acometidos por doenças que demandem tratamentos de alto custo.
E, como visto, o Poder Judiciário pode ser acionado para, dentro de critérios razoáveis e justos, compelir o Estado a cumprir seu papel constitucional, garantindo o direito à saúde àqueles que mais precisam, mesmo diante de políticas públicas tendentes a ser balizadas por critérios econômicos.
*Marise Basso Amaral – diretora geral do Instituto Unidos pela Vida, professora da faculdade de educação da UFF, pós-doutora pela Fiocruz, Doutora e Mestre em Educação.
*Verônica Stasiak Bednarczuk de Oliveira – fundadora e diretora executiva do Instituto Unidos pela Vida, mestranda em ATS pela UFPR, MBA em Políticas Públicas, psicóloga.
*Cristiano Silveira – biólogo, diretor de políticas públicas e advocacy do Instituto Unidos pela Vida e coordenador da Equipe de Fibra.
*Natalie Alves Lima – sócia e diretora executiva do Escritório Malta Advogados, mestranda e bacharela pela Universidade de Brasília e membro da Comissão de Relações Institucionais e Governamentais da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional do Distrito Federal.
*Rafael Rossi – sócio no escritório Malta Advogados, bacharel em Direito, Licenciado e Bacharelado em Ciências Sociais, ambos pela UEMS; Especialista em Direito Civil e Processual Civil, em Direito Penal, Processual Penal, Empresarial e Direito Público pela ESMA/DF.
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Nota importante: As informações aqui contidas têm cunho estritamente educacional. Em hipótese alguma pretendem substituir a consulta médica, a realização de exames e/ou o tratamento médico. Em caso de dúvidas, fale com seu médico.