A ‘doença órfã’ me deu uma nova família

Comunicação IUPV - 07/08/2018 16:29

Por Rosemarie Garland-Thomson
Os membros da minha família compartilham várias peculiaridades, mas nenhum deles se parece comigo. Vários entre nós temos o mesmo físico forte, olhos azuis, cabelos bonitos do norte da Europa e uma pele que não deve se expor ao sol. Eu me encaixo bem nessas características, exceto por uma particularidade muito incomum.
Nasci com mãos e antebraços assimétricos e atípicos em um mundo no qual a simetria e a tipicidade são as marcas da boa aparência e da adequação funcional. Na verdade, sou tão incomum que em meio século de vida, encontrei apenas uma outra pessoa que parece exatamente comigo. Em outras palavras, sou rara.
Recentemente aprendi que sou distinta dessa maneira porque tenho uma condição genética rara — a sindactilia complexa. Antes disso, nenhum médico jamais havia apresentado um diagnóstico mais útil que um mero “dar de ombros”.
Antes de ser capaz de identificar e dar nome ao que eu tenho, eu estava sujeita a uma série de termos desagradáveis: eu era “criança de aparência engraçada”.  A mais desagradável e persistente das expressões foi “defeito de nascença”, o resultado infeliz de qualquer pecado ou contaminação que pudesse ser conjecturado ou imaginado — consumo de álcool, poluição, contaminação ambiental. Sem um diagnóstico impressionante para oferecer à perpétua pergunta sobre “o que aconteceu” comigo, eu normalmente recorria à frase “nasci assim”.
Agora estou feliz por saber que tenho uma “condição genética rara”. Qualquer coisa “rara” tem prestígio, sugerindo alguma coisa que é procurada e apreciada por colecionadores, arqueólogos ou cientistas importantes. De fato, minha maneira de ser é tão excepcional que menos de uma em 90 mil pessoas são razoavelmente parecidas comigo a ponto de receber o mesmo diagnóstico. É mais ou menos como ganhar na loteria.
Antes que décadas de trabalho científico nos dessem o mapeamento do genoma em 2003, nossas maneiras de explicar as variações humanas inesperadas eram limitadas. Pessoas como eu eram inexplicáveis. E como sempre acontece com o inexplicável, o raciocínio sobrenatural e supersticioso logo surgia. A culpabilização da mãe e a ideia de punição divina eram salientadas. Supunha-se que pecados mortais, pensamentos eróticos ou qualquer violação do código social produziram crianças deficientes.
Versões modernas dessa superstição assombram as mães de crianças com deficiências congênitas, que experimentam a culpa corrosiva sobre a exposição a toxinas, que podiam ser desde cremes faciais e esmaltes para unhas, álcool, cigarros até a talidomida e o BPA das garrafas plásticas.
Mas as coisas estão mudando. “Rara” é atualmente uma inflexão no meu kit de ferramentas de dignidade pessoal, um aprimoramento de status. Mesmo “síndrome” tem um ar de sofisticação, é um acréscimo em vez da redução trazida pelas expressões “déficit” ou “defeito”. É alguma coisa que você tem em vez de algo que você não tem.
Mais importante, a minha forma não é um erro, um golpe aleatório de um mundo externo ameaçador. A minha forma é intencional, manifestando-se deliberadamente a partir de algum propósito misterioso no âmago do meu ser. O capricho intencional da evolução, uma força inexplicável que está além de nossa imaginação humana insignificante, está experimentando um novo projeto.
Hoje, identificar doenças genéticas é uma indústria em crescimento, alimentada por financiamento de pesquisa científica e lucrativos interesses comerciais. Com testes atualmente disponíveis em toda parte, desde empresas privadas até clínicas, pessoas cujas doenças genéticas foram identificadas são uma população crescente. Acontece que todos nós, somos portadores de pelo menos oito a dez doenças genéticas comuns e significativas, e ainda mais raras, condições enigmáticas.
O que isso nos diz é que estamos todos relacionados uns com os outros através de um sistema de linhagem genética que quase ninguém entendia até recentemente. Esses círculos de parentesco genético estão se expandindo e nos conectando através de redes de genes recessivos, dominantes e autossômicos; DNA mitocondrial; e interações complexas que moldam como os genes se expressam enquanto nos desenvolvemos. A ciência médica descobriu mais de 7 mil doenças genéticas, e outras novas emergem todos os dias.
As pessoas que vivem no meu mundo às vezes se autodenominam com nomes tribais como “talidomidas” ou “pólios”. Agora nossas novas identidades genéticas geram afinidades mais complexas. Condições genéticas raras também são chamadas de “doenças órfãs”. Agora que tenho uma doença órfã em vez de um defeito de nascença, não sou mais um órfão, mas, em vez disso, um novo membro de várias tribos distintas, até o momento uma rede oculta de afinidades e afiliações em clãs.
As semelhanças são fundamentais para que haja afinidade, sejam elas familiares, tribais ou étnicas. Aquilo com que parecemos diz a nós e a outras pessoas a que grupo pertencemos. Nossos traços distintivos nos unem em redes de afinidades que frequentemente nos oferecem famílias alternativas de apoio e cuidados mútuos.
Em uma recente conversa sobre a CRISPR, a mais nova ferramenta de edição genética, o geneticista e Prêmio Nobel Mario R. Capecchi me disse, “O propósito da evolução é antecipar o inesperado”. A variação genética aleatória é o que move a evolução adiante, produzindo novas formas que são novas soluções para ambientes em transformação, projetadas tanto pela natureza quanto pelo ser humano.
O curto período de vida e de imaginação do ser humano limita nossas capacidades de antecipar o inesperado. Formas de ser que atendem às demandas da vida humana enquanto vivemos aqui e agora podem não servir tão bem aos nossos descendentes. Características que consideramos como inteligência, força, visão, honradez, destreza, massa corporal ou pureza sobreviverão à sua utilidade, transformando-se de vantagens em desvantagens, ainda que isso pareça contraintuitivo hoje, especialmente talvez àqueles que têm essas características valorizadas e delas se beneficiem.
O enquadramento de Capecchi do propósito da evolução como antecipação do inesperado pode nos oferecer percepções progressivas sobre a vida com deficiências e se estabelecer como uma advertência contra a arrogância e o narcisismo em nossas aspirações de moldar nossas comunidades humanas de acordo com as características valorizadas pela maioria.
As pessoas com deficiência são o inesperado na forma de corpo humano. Os desafios de viver em um mundo que não foi construído para nós são oportunidades para a engenhosidade e a adaptabilidade, especialmente para aqueles entre nós que iniciam a vida já deficientes. Somos inovadores, pioneiros, usuários especialistas e hackers de tecnologia, visto que respondemos à adversidade que os ambientes naturais e construídos pelo homem nos apresentam.
Não sabemos quais variações humanas serão vantagens e quais serão desvantagens no longo arco de nossa luta para prevalecer em um ambiente em constante transformação. Tenho uma amiga cega com excelente capacidade de orientação, que sempre diz brincando que guiará todos nós para fora de prédios e aviões em chamas quando as luzes se apagarem. Meus amigos surdos são livres do estresse da poluição sonora e da exaustão de conversar em ambientes com ruídos incessantes nos bares da moda nos quais atualmente se desenrola a vida social e profissional. Outro amigo que é uma pessoa de baixa estatura observa que consome menos recursos e que se encaixa melhor em espaços de avião que os homens grandes, bons em luta e futebol americano. Algumas pessoas com autismo têm uma capacidade de concentração que dinamiza a criatividade. A capacidade de compor com minha própria voz em vez de usar teclados desajeitados me coloca à frente em uma nova tecnologia de comunicação.
Cada um de nós carrega dentro de si muitas “doenças órfãs” — aquela frase à moda de Charles Dickens que normalmente rompe a conexão entre as pessoas como eu e a família humana das pessoas comuns. Todos nós somos um pouco “órfãos”. Em vez disso, somos primos de segundo ou terceiro grau, inextricavelmente ligados por uma cadeia de ancestrais e descendentes que desaparecem rapidamente.
Somos todos pacientes em espera, unidos por uma lista de espera da herança escondida profundamente nos rodopios elegantes daquela dupla hélice presente em cada uma de nossas células — silenciosamente vacilante em sua determinação inescrutável de moldar nossas vidas. Todos esses clichês de conectividade estão agora codificados em nossos genes. A comunidade humana é literalmente a família humana.
Nós não somos mais órfãos. Em vez disso, somos uma tribo robusta, parentes de sangue, navegando em um mundo em transformação, vivendo bem, nos ligando rapidamente e passando adiante.
Rosemarie Garland-Thomson é uma bioeticista e professora de Língua Inglesa na Universidade de Emory, onde é diretora-fundadora da Disability Studies Initiative (Iniciativa Estudos sobre Deficiência).
Fonte: Publicado em 26 de outubro 2017 na Seção Opinião do New York Times disponível em: https://www.nytimes.com/2017/10/26/opinion/my-orphan-disease-has-given-me-a-new-family.html
Traduzido por Vera Carvalho, voluntária de tradução para o Instituto Unidos pela Vida. Vera é tradutora profissional com especialidade na área científica (carvalho.vera.carvalho@gmail.com).

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