Nem via SUS, nem via judicial: o drama das pessoas com fibrose cística que, mesmo vencendo ações, não recebem medicação

Comunicação IUPV - 30/11/2022 12:08

Nem liminares ou multas não são capazes de evitar atrasos para o recebimento das medicações após vitória na Justiça

Em 2022, a pesquisa do canadense John Richard Riordan que trouxe a descoberta da DeltaF508 – primeira mutação descrita como causadora da fibrose cística – completou 33 anos. Ela foi realizada ao lado dos biólogos Francis Collins e Lap-Chee Tsui e publicada na revista Science em 08 de setembro de 1989, data que agora é considerada como o Dia Mundial da Fibrose Cística. De lá pra cá, muita coisa mudou, avançou, e novos estudos já descobriram mais de 2.000 mutações diferentes e que podem causar a patologia.

A proteína CFTR controla o fluxo adequado de água e cloreto para dentro e fora das células que revestem os pulmões e outros órgãos. Em pessoas com fibrose cística, as mutações no gene CFTR causam a produção de uma proteína defeituosa, situação que leva ao acúmulo de muco espesso e viscoso, o que pode acarretar infecções nos pulmões, lesões no pâncreas e problemas em outros órgãos do corpo.

Essa evolução permitiu o surgimento de tratamentos considerados revolucionários para a doença, como os moduladores da proteína CFTR. Atualmente, existem quatro moduladores disponíveis: ivacaftor (Kalydeco), lumacaftor/ivacaftor (Orkambi), elexacaftor/tezacaftor/ivacaftor (Trikafta) e tezacaftor/ivacaftor e ivacaftor (Symdeko).

“Do ponto de vista das pessoas diagnosticadas, tetmos quatro moduladores disponíveis é algo muito importante, afinal, vivemos períodos sem nenhuma opção, e agora temos. Porém, o que ainda é um problema é que, mundialmente, muitos indivíduos elegíveis ainda não se beneficiam dessas tecnologias, como é o caso do Brasil”, explica Dr. Miquéias Lopes Pacheco, Biomédico e Pesquisador na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa

Para exemplificar, Dr. Miquéias relembra o caso do ivacaftor (Kalydeco), aprovado pela Food and Drug Administration (FDA) em 2012 para uso nos Estados Unidos e que no Brasil teve a aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) apenas em 2018, com recomendação favorável para incorporação no SUS somente no final de 2020.

“Ou seja, temos um atraso de quase uma década, período em que pessoas elegíveis já poderiam estar se beneficiando com a nova droga. Como pesquisador, acredito que seja importante que o desenvolvimento de novos fármacos continue, principalmente vindos de outras indústrias farmacêuticas, possibilitando que mais opções surjam e mais pessoas sejam tratadas, afirmou Dr. Miquéias.

Os medicamentos lumacaftor/ivacaftor (Orkambi) e tezacaftor/ivacaftor e ivacaftor (Symdeko) já passaram por todo o processo de avaliação de tecnologia do Ministério da Saúde, que decidiu por sua não disponibilização aos pacientes no SUS. O elexacaftor/tezacaftor/ivacaftor (Trikafta) teve seu preço máximo de comercialização no país definido pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), mas ainda não foi submetido para avaliação.

Judicialização

Os longos e burocráticos caminhos até a incorporação e a não disponibilização no SUS na maioria dos pedidos fez com que os casos de judicialização desses medicamentos no Brasil crescessem nos últimos anos. O Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS) define judicialização da saúde como a entrada de ações judiciais contra o SUS com o objetivo de solicitar o fornecimento de tratamentos médicos com base no direito constitucional à saúde.

De acordo com a advogada Dra. Paola Ugalde, essas demandas judiciais em saúde, em especial medicações de alto custo – que é o caso dos moduladores -, devem ser ajuizadas em desfavor da Justiça Federal contra a União e/ou Estado.

Neste cenário, diversas pessoas com fibrose cística e familiares estão entrando com processos judiciais para ter acesso aos moduladores após receberem recomendação médica para o uso. Muitas delas conseguem o deferimento liminar para o fornecimento da medicação, processo que, na maioria dos casos, é demorado e desgastante para todos. Porém, mesmo com o resultado positivo e o direito garantido de recebimento do medicamento, nem sempre o Governo cumpre com a entrega no prazo estipulado.

Isso aconteceu com a Luciana Laranjeira, de 40 anos e diagnosticada com fibrose cística. Ela conseguiu acesso ao medicamento tezacaftor/ivacaftor e ivacaftor (Symdeko) judicialmente por meio de uma liminar de urgência e conta que o atraso nas entregas foi grande e gerou nova tensão.

“Depois que eu recebi as três primeiras caixas, para três meses de uso, minha realidade mudou. O medicamento me deu mais qualidade de vida e fez com que sintomas que eu tive durante toda a vida praticamente desaparecessem. Porém, como consegui por meio de uma ação judicial, as entregas não foram realizadas no tempo correto. O primeiro atraso foi de 45 dias”, relembrou Luciana.

Neste período em que ficou novamente sem o medicamento, os sintomas voltaram e a qualidade de vida conquistada foi perdida. “Voltei a ficar deitada, fiquei febril, a secreção aumentou e todas as medicações que eu parei de usar depois da chegada do Symdeko, voltaram a ser utilizadas. A quantidade de nebulizações aumentou novamente, o uso das enzimas pancreáticas também, entre outras etapas do tratamento.”

Luciana finaliza reforçando que mesmo com a decisão judicial favorável para a entrega do medicamento, esses atrasos impactam na saúde física e mental da pessoa com fibrose cística e de toda a família.

“É uma alegria muito grande ter acesso a esses medicamentos modernos e que de fato impactam na qualidade de vida de quem tem fibrose cística, porém, essa tensão em relação à entrega de cada lote causa muita ansiedade. Atualmente, estou recebendo de seis em seis caixas, mas agora estou com apenas duas e não tenho certeza se o Ministério da Saúde irá enviar a nova remessa antes de acabar. Esse processo é muito difícil e desgastante.”

Direitos do paciente

Dra. Paola Ugalde relembra que, na estrutura da Justiça Federal, existe a primeira instância, composta por 1.191 juízes federais e 612 juízes federais substitutos, que estão distribuídos entre as varas federais localizadas nas capitais e no interior dos Estados.

“Nesta realidade, cada vara federal e os respectivos tribunais federais podem atuar e decidir de maneiras diferentes conforme o regimento interno, jurisprudências, entre outros aspectos. Nas ações de saúde, é direito do autor receber imediatamente a medicação enquanto tramita o processo até o julgamento final e cada Juiz Federal determinará o cumprimento da tutela de urgência ou liminar conforme seu entendimento. Por isso, nos deparamos com inúmeras decisões diferentes para processos idênticos.”

A advogada ainda ressalta que, infelizmente, é comum que após ter sido deferida a liminar pelo Magistrado, uma nova batalha seja iniciada para efetivar o cumprimento da decisão proferida pelo juízo. “Essa fase gera muita preocupação, frustração e a pergunta: ‘Quais as medidas eficazes para solicitar ao Magistrado o cumprimento das liminares quando descumpridas pela União ou Estado?’.

De acordo com a Dra. Paola, a depender do caso concreto, o juiz deverá adotar todas as medidas necessárias para que a União cumpra com o seu dever constitucional e a concretização do direito à saúde.

“Podemos citar algumas medidas coercitivas que objetivam o cumprimento das decisões, como o pagamento de multa diária ou por hora de descumprimento da ordem judicial e o bloqueio de ativos financeiros do Estado e/ou da União. Porém, alguns juízes não são adeptos do bloqueio de verba pública e optam por intimar o responsável para a realização do depósito do valor correspondente à aquisição da medicação sob pena de multa diária por descumprimento.”

Dra. Paola ainda afirma que, caso as medidas anteriores não tenham feito, para a efetivação da ordem judicial de disponibilização do medicamento ao paciente, pode-se requerer ao juiz a adoção da medida coercitiva da prisão do gestor público por improbidade e prevaricação, devendo a citação do gestor público ser objetivada na pessoa física, para tomar conhecimento do processo e o devido cumprimento da liminar sob pena de prisão.

“É importante lembrar que cada processo judicial tem um número de cadastro no sistema, SEI.gov que indica quais os procedimentos estão sendo adotados pela administração pública para a entrega da medicação. Isso pode incluir a abertura de processo interno para efetivar o depósito judicial ou inclusão do autor em processos de compra agrupada de medicamentos mediante licitações de compra.”

Para finalizar, Dra. Paola reforça que cada caso é um caso, e as melhores medidas para a efetivação do direito à saúde e acesso ao medicamento após a vitória judicial podem variar, sendo fundamental a consulta e suporte de um profissional da área do Direito para que esse processo ocorra da forma mais assertiva possível.

“As pessoas com fibrose cística, familiares e associações devem continuar objetivando as discussões com o Poder Público para o enfrentamento do problema da judicialização da saúde e do descumprimento das decisões judiciais pelo Estado e, principalmente, buscar uma atuação mais efetiva dos governantes na realização de políticas públicas que favoreçam a concretização do direito à saúde.”

O Unidos pela Vida – Instituto Brasileiro de Atenção à Fibrose Cística defende a inclusão de medicamentos na rede pública de saúde por meio do processo padrão de Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS) conduzido pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) como medida fundamental para garantia da sustentabilidade do Sistema Único de Saúde (SUS). O Instituto Unidos pela Vida não fomenta a judicialização em saúde, pois isso gera um problema de acesso desigual aos tratamentos, mas entende que, muitas vezes, pode ser a única forma de acesso de pessoas com fibrose cística.

Em caso de dúvidas sobre o seu tratamento e indicação para uso de moduladores, entre em contato com a equipe médica que faz o seu acompanhamento no Centro de Referência.

Por Kamila Vintureli

Referências:

https://www.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/corregedoria-geral-da-justica-federal/estatisticas-da-justica-federal-1/juizes-federais

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8429.htm

https://www.trf4.jus.br/trf4/

RIORDAN, J. R. et al. Identification of the cystic fibrosis gene: cloning and characterization of complementary DNA. Science 245(4922), 1066–73 (1989).

Cystic Fibrosis Mutation Database. Disponível em: <http://www.genet.sickkids.on.ca>.

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Nota importante: As informações aqui contidas têm cunho estritamente educacional. Em hipótese alguma pretendem substituir a consulta médica, a realização de exames e/ou o tratamento médico. Em caso de dúvidas, fale com seu médico.

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