Fisioterapeuta | Keila Tavares
Instituto Unidos pela Vida - 02/08/2011 12:59“Meu nome é Keila Okuda Tavares, tenho 34 anos e sou fisioterapeuta. Trabalho no Centro de Reabilitação Física (CRF) da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), localizado no Campus da Cidade de Cascavel-PR e também sou professora do Curso de Fisioterapia dessa mesma Instituição de Ensino. Uma das minhas disciplinas é a Fisioterapia Pneumofuncional.
Quando eu estava cursando a graduação em Fisioterapia há 13 anos, eu não aprendi nada sobre a Fibrose Cística na disciplina de Pneumologia e nem na disciplina de Fisioterapia Respiratória. Saí da Universidade sem ter nenhum embasamento teórico sobre o assunto e sem nunca ter visto ninguém acometido por essa doença. Somente com o passar do tempo, trabalhando com pacientes que apresentavam comprometimentos respiratórios aqui no Oeste do Paraná, entrei em contato com pessoas que tinham a Fibrose Cística, algo que até então eu nunca tinha ouvido falar. Como não sabia nada sobre o assunto, fui pesquisar e estudar para proporcionar aos meus pacientes o melhor tratamento possível, tendo em vista o que eu tinha encontrado em livros e artigos científicos.
Achava que o mais importante seria durante os meus atendimentos realizar todas as técnicas comprovadamente eficazes nesse tipo de caso e orientar os fibrocísticos e seus familiares sobre a importância da manutenção do tratamento medicamentoso e a necessidade de realizar em casa as condutas de higiene brônquica e outros exercícios respiratórios. Pensava que assim meus pacientes não desenvolveriam nenhum tipo de complicação (ou que demorariam mais para desenvolver) e estaria melhorando o seu prognóstico.
Durante os nossos encontros eu conversava sobre a sua rotina de tratamentos em casa e se tudo havia sido feito conforme as orientações da equipe de saúde envolvida nos atendimentos. Nunca perguntava muita coisa sobre a vida pessoal deles, como era para eles ter a Fibrose Cística, como isso os afetavam no dia a dia (estudos, trabalho, lazer, contexto familiar, etc). Do ponto de vista fisiopatológico eu já sabia muito sobre a doença e as condutas mais adequadas, mas do ponto de vista psicossocial eu não sabia nada. Tentava me colocar no lugar deles, mas tinha uma visão incompleta e limitada do problema.
Em 2008 resolvi me inscrever para a seleção do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde da Universidade Estadual de Maringá (UEM) para fazer o Curso de Mestrado. Eu tinha preferência por uma determinada professora desse Programa, porque ela desenvolvia pesquisas qualitativas, um tipo de investigação em que entramos em contato direto com as pessoas para conhecermos suas opiniões, experiências e vivências.
Quando fui para a entrevista que fazia parte do processo de seleção, fiquei sabendo que essa professora estava estudando a Triagem Neonatal no Estado do Paraná e a Fibrose Cística. Surgiu então a possibilidade, caso eu conseguisse a aprovação para entrar no Mestrado, de desenvolver um estudo relacionado aos fibrocísticos da cidade de Cascavel e região.
Consegui entrar no Mestrado e iniciei a minha caminhada com a pesquisa qualitativa e a Fibrose Cística. Estudei ainda mais sobre a doença e sobre a vivência de pessoas que apresentam algum tipo de doença crônica, aquelas que geralmente não tem cura e são progressivas. Comecei a mudar a minha opinião sobre várias coisas em relação ao tratamento desses indivíduos, principalmente em relação à forma como as equipes de saúde conduzem esse tratamento, a forma como o profissional da saúde deve se relacionar com as pessoas portadoras de doenças crônicas, valorizando mais o ser humano e a família que está passando por esse tipo de situação. Comecei a perceber que eu, assim como muitas outras pessoas da área da saúde, dava muito importância aos procedimentos técnicos que se deve realizar e muito menos importância à relação paciente-família-profissional da saúde.
Nessa época eu tinha que definir o que iria pesquisar e porque iria pesquisar. Decidi que o meu objetivo seria compreender o que é era ser um fibrocístico, através dos relatos das pessoas que apresentavam a Fibrose Cística e também através dos relatos de suas mães. Escolhi a figura materna porque a mãe ocupa um papel fundamental dentro da estrutura familiar. Na maior parte dos casos são as mães que estão à frente do cuidado da casa, do marido, dos filhos e da saúde de toda a família. Geralmente é ela que se envolve mais com o tratamento dos filhos do que qualquer outro familiar, principalmente quando a doença é hereditária e com manifestações precoces e progressivas como no caso da Fibrose Cística.
Tomei essa decisão porque percebi que no cuidado de pessoas que apresentam uma doença como essa, não deve apenas existir a preocupação com os aspectos técnicos do tratamento, deve-se levar em consideração os aspectos emocionais e sociais envolvidos. Compreender como a pessoa que está “doente” e sua família vivenciam o seu problema e o seu tratamento, modifica a forma do profissional da saúde atuar, pode tornar o ato de cuidar mais humano e isso por sua vez afeta de maneira significativa os resultados das intervenções em saúde.
Depois de definido o que eu ia fazer e porque, comecei a pensar em como fazer a minha coleta de dados. Conversei com a médica Coordenadora do Ambulatório de Fibrose Cística do Hospital Universitário do Oeste do Paraná (HUOP), localizado em Cascavel-PR, para que ela me passasse os nomes das pessoas que eram atendidas nessa Instituição. E foi assim que entrei em contato com as pessoas que eu entrevistei para o meu estudo.
Decidi que eu iria visitar cada família, mesmo as que moravam em outras cidades. Viajei para Assis Chateaubriand, Campo Bonito, Foz do Iguaçu, Palotina, Realeza, Toledo, Ubiratã e Vera Cruz do Oeste (cidades vizinhas a Cascavel). E todos podem ter certeza que os depoimentos das pessoas que entrevistei mudaram a forma como encaro a vida. Hoje sou outra pessoa, professora e profissional da saúde, pelo simples fato de ter conversado com essas pessoas de muita fibra e suas supermães. Sou muito grata por todos terem me acolhido em seus lares e compartilhado suas vivências e experiências comigo.
Percebi como foi marcante para essas mães e para o resto da família receber o diagnóstico (precoce ou tardio) de uma doença que muita gente não conhece. Todos ficaram assustados e se sentiram desamparados e perdidos. Constatei também, como é difícil conviver com o diagnóstico e tratamento incorreto pelo fato de muitos profissionais da saúde ainda não conhecerem a Fibrose Cística. E no caso do diagnóstico já estar definido, como é difícil ter que conviver com profissionais que não se esforçam para adquirir mais informações com o intuito de tratar de forma adequada os fibrocísticos.
As mães vivenciaram sentimentos positivos ao saber que a atenção especializada era uma realidade no Estado, mas com o passar do tempo e com a rotina de viagens até a capital paranaense, começaram a experimentar o cansaço que esse tratamento e acompanhamento exigem. Algumas mães relataram que viajavam pelo menos uma vez por mês. Quando os filhos apresentavam alguma intercorrência, o número de viagens aumentava, pois elas não encontravam em seus municípios de origem, profissionais acostumados a trabalhar com fibrocísticos.
A partir do momento que a região Oeste do Paraná passou a ter também um local de atendimento especializado, a situação ficou menos difícil para todas as famílias que visitei. A distância entre os municípios de origem até o HUOP varia entre 46 e 145 km. Mesmo assim, algumas mães relatam que distâncias “menores” podem ser difíceis de enfrentar em casos de complicações.
Observei que a vida de toda família mudou a partir do momento da comunicação do diagnóstico e que a Fibrose Cística afetava não apenas o indivíduo portador da alteração genética. Por este motivo consegui visualizar que era necessário ter um tempinho para conversar os familiares também, já que todos estavam envolvidos com a continuidade do tratamento no ambiente domiciliar e a sua manutenção. Estar disponível para esclarecer suas dúvidas é algo muito importante, algo que contribui para a aceitação e adaptação dessas famílias.
Percebi com as entrevistas que a forma como a família vivencia a situação, principalmente a mãe, influencia a forma como o indivíduo que tem a Fibrose Cística aceita a sua realidade. Mães e familiares que aceitaram e se adaptaram melhor a doença, influenciaram positivamente a forma como o fibrocístico encara a sua condição.
Por meio das falas dos indivíduos que apresentavam a Fibrose Cística ficou claro pra mim que eles são pessoas como qualquer outra, que querem curtir muito a vida como todos nós. Que eles querem e podem crescer, estudar, ter uma profissão, casar, ter sua própria família, entre outras coisas que todo mundo faz. Eu digo isso porque há alguns anos atrás, quando tive o primeiro contato com esse tipo de doença, eu achava que o tratamento medicamentoso e fisioterapêutico seriam as coisas mais importantes de suas vidas, porque era um tratamento que tinha o objetivo de melhorar o seu prognóstico.
Conversando com as pessoas que apresentam a Fibrose Cística constatei que é muito cansativa e estressante a rotina diária de medicamentos e fisioterapia respiratória. Rotina que é para o resto da vida. Além disso, existe a necessidade das internações. Alguém imagina o que é ficar 14 a 21 dias internado para receber medicação endovenosa? Isso quando eles não ficam internados por desenvolverem complicações relacionadas à doença. E o preconceito que algumas pessoas têm pelo fato de não saberem nada sobre a doença? Muitos entrevistados relataram que amigos se afastaram quando ficaram sabendo do diagnóstico, por acharem que a doença era contagiosa.
Hoje eu sei que não preciso ficar bombardeando essas pessoas e suas mães com informações e cobranças a todo o momento, porque eles já vivem sob pressão e experimentam dificuldades desde o dia da comunicação do diagnóstico. Hoje eu sei que essas pessoas tem muita força de vontade e estabelecem uma luta diária pelo seu bem-estar. São pessoas que merecem a nossa consideração e admiração. São pessoas a quem devemos dar mais atenção.
O processo de cuidar não pode ocorrer em uma via de mão única, ele deve considerar a capacidade que o ser humano tem de interagir com os outros. E eu não interagia de verdade com os meus pacientes, eu interagia com a doença deles, com a Fibrose Cística. É preciso valorizar a individualidade de cada um, enriquecendo o tratamento e tornando mais completo e humano, o cuidar. Muitas vezes eu me esquecia de que era um ser humano frente a outro ser humano, e que podia ir além da técnica. Eu falava aos pacientes apenas o que eu queria e não me disponibilizava a ouvi-los, apenas determinava o que eles deveriam fazer e pronto. Ao invés de ajudá-los a enfrentar tudo isso eu acho que complicava um pouco mais a situação porque não os ouvia de verdade.
Reconheci com o meu estudo o quanto é necessário a divulgação de informações sobre a Fibrose Cística para que muitas pessoas não sofram o que a Verônica Stasiak sofreu. E ela é apenas um dos vários exemplos que conheço. Reconheci que se todos fizerem um pouquinho mais, cada um dentro das suas possibilidades, estará ajudando muito essas pessoas de fibra, suas mães e suas famílias.
Meus alunos de graduação serão profissionais que conhecem a Fibrose Cística e espero que relatando a minha experiência nas aulas eu possa plantar uma semente que faça brotar dentro deles uma nova forma de tratar as pessoas, não somente aquelas com Fibrose Cística. Que eles ouçam mais o que os pacientes portadores de doenças crônicas e suas famílias têm a dizer, pois assim estarão conhecendo de verdade o problema dessas pessoas que estão passando por uma situação não planejada em suas vidas. Espero que divulgando meus estudos e realizando outros eu possa estar ajudando um pouco mais.”
Depoimento enviado para a equipe do Instituto Unidos pela Vida por e-mail por Keila Tavares.
Este relato tem cunho informativo. Não pretende, em momento algum, substituir ou inferir em quaisquer condutas médicas. Em caso de dúvidas, consulte sua equipe multidisciplinar.