Depoimento | Um dia na nossa pele
Instituto Unidos pela Vida - 01/06/2017 17:00
Por Laura Patrón – Porto Alegre/ RS, mãe de um menino com Síndrome Hemolítico Urêmica atípica – SHUa
“Eu gostaria imensamente que todos pudessem viver um dia na nossa pele. No corpo de um doente raro ou de um familiar próximo. Primeiro, eu quis os juízes, donos das sentenças. Mas pensando melhor, acho que todos é um número mais justo. Seria o correto. Professores, empresários, o dono do restaurante, a gerente do banco. Os meus vizinhos. Médicos. Síndicos. Representantes de laboratórios. Advogados. Os motoristas do Uber que pego quinzenalmente para levar meu filho de volta ao hospital, onde ele sobreviveu a longos setenta e um dias internado na primeira crise de uma doença rara e violenta, e de onde às vezes tenho a sensação que ele nunca saiu. As enfermeiras que manipulam a medicação, o atendente do café que nos vende o pão de queijo. Todos, sem exceção.
É que de longe é fácil julgar na base da matemática. De longe parece mais aceitável abraçar números, e não pessoas. Contar, ao invés de olhar profundo. A certa distância fica até simples: risca, resolve, tira, decide, deu. Sem olhar os olhos vivos de quem precisa, o frio é garantido. De longe somos papéis. Raros papéis, nomes sem sentido pra você, vidas que não fazem parte da sua. Não fazem a menor diferença para sua família. Você pode passar batido pela nota do nosso funeral do jornal. Você não vai chorar a morte do meu filho.
Bastava só um dia. Um diazinho qualquer. Vinte e quatro horas. Nem mais um minuto. Encare como uma experiência. Um dia do seu ano, com trezentos e sessenta e cinco. Um dia para sentir na sua pele o que é viver na minha, todos os outros.
Queria dividir o seu passeio pela minha vida em três etapas. As primeiras horas, você viveria o meu aniversário de vinte e cinco anos, estávamos em festa e meu filho corria e brincava pela casa. Depois, avançamos apenas uma semana e você vai passar pelo dia que recebi o diagnóstico dele de SHUa (síndrome hemolítico-urêmica atípica), em uma salinha pequena nos fundos de uma UTI pediátrica. Foi o mesmo dia que meu filho sofreu um AVC, entrou em coma e por muito pouco não nos deixou. Por último, faríamos uma rápida visita pelos meus dias atuais. Não vai demorar muito. É só para ilustrar.
De cara você se sentiria a pessoa mais sortuda do mundo: Você é saudável e nunca foi tão feliz. Você tem um filho mágico, com uma energia toda especial e uma conexão com ele mais especial ainda. Você descobriu o que é o amor, finalmente. E ele é mais bonito que uma borboleta azul. O mundo é todo novo, e maravilhoso. A vida cheia de sonhos sendo realizados. O rumo depende apenas da sua vontade. Você vai se sentir cheio de estrelas por dentro. E uma esperança arrebatadora no caminho. É como eu me sentia.
No segundo momento você vai sentir dor. Muita dor. Não tem jeito. Você estava no céu e tudo desabou. O hospital é seu novo lar e lá faz frio. É um choque duro. Sem direito a anestesia. Tinha uma história diferente pra você virando a esquina. Você não viu. Não tinha como ver. Não tinha nada para ser feito. O soco no estômago veio para ficar. Você vai pegar a bomba com as próprias mãos e trazer para dentro da sua casa. Você vai assistir segundo a segundo a contagem regressiva do fim, sem poder fazer nada. Você vai sentar ao lado do seu filho, morrendo, sangrando, com a vida sufocada e os olhos fechados. Você vai suplicar. Acreditar em tudo que nunca acreditou. Desistir de todas as estrelas para poder ficar só com uma. Vai rasgar os sonhos porque nenhum deles vale mais nada se esse pedaço de você, estendido em uma cama de UTI, não respirar mais uma vez. Você vai se sentir em um filme de ficção científica sacana, de péssimo gosto, quando o médico te der uma sigla para carimbar no seu corpo e na sua identidade, quando te disserem que um raio acabou de cair na sua cama, que a vida jamais será a mesma. Quando informarem oficialmente, profissionalmente, duramente, que seu filho tem uma doença raríssima e vai depender pro resto da vida de uma medicação absurdamente cara, que sequer existe no Brasil, que só via processo, só via SUS. Que a vida do seu filho agora depende dos outros, não só de você. Depende de um sistema, de processos e papéis, logística e bom senso. Burocracia. Boa vontade alheia. Você vai sentir medo, muito medo. Você não sabia o que era ter medo até esse momento que te tira a voz. Você não vai poder nem gritar. Eu não pude.
No último momento da nossa visitação você vai sorrir. Mas vai saber que parte do seu sorriso é uma mentira. A outra parte é teimosia em resistir. Teimosia tentando ser feliz. Você voltou para casa com o seu filho. Ele sobreviveu e continua sendo o mesmo ser incrível, mas com graves sequelas. Dependente de tudo. Você vive por ele. Você faz de tudo para fazer a vida dele o melhor que pode ser. Você quer que ele seja feliz. Que tenha a chance de ter um mundo, do jeito que for. Que tenha uma chance de ter uma vida, para além de cuidados médicos e terapias. Você chora de noite escondido, porque não sabe se tem poder suficiente para garantir isso. Você trocaria de lugar com o seu filho sem pensar meia vez. Você não sabe o que vai acontecer. Seu coração pulsa dúvidas de hora em hora. Você quer ver ele ficar velhinho, quer morrer antes, quer controlar a vida e não pode, quer resolver tudo e não consegue. Você é só uma reles mortal mãe vivendo um pesadelo de mãos atadas e tudo que pode fazer é tentar melhorar o percurso. Você não sabe se um dia vai ver seu filho andar de novo e por isso não espera, corre com ele no colo para que ele saiba o que é correr. Inventa aventuras, experiências, maltrata o seu corpo para dar um outro corpo para um menino de cinco anos que apesar de tanto, vive sorrindo e dizendo que está tudo bem. Você sabe que não está tudo bem.
O remédio está faltando na geladeira, atrasou mais uma vez. E se não chega? Você vai sentir agonia. E raiva. Vai se sentir um completo inútil. Impotente. Refém. O seu filho pode morrer a qualquer atraso. Um perigo enlouquecedor está sentado na poltrona da frente. Essa cena vai se repetir muitas vezes, desculpe. Todos os meses acontece. Você vai ficar rebobinando essa agonia, de novo e de novo. Por favor, continue tentando sorrir. Você vai gritar. Agora vai. Você vai gritar com pessoas, órgãos responsáveis. Você vai ficar sabendo que a medicação está ameaçada por decisões judiciais. Você vai sangrar pelo nariz. Vai questionar: Mas a decisão já foi dada. O processo tramitou e transitou em julgado. Foi feito por advogados, defensores públicos. Apreciado e concedido por um juiz, um desembargador, um ministro. Você vai usar palavras difíceis que não domina. Você não domina nem o seu sono a noite. Não tem direito a nenhum tipo de tranquilidade. Eles voltam atrás e colocam você em xeque. Você sente que sua vida é uma brincadeira de mau gosto. Você não é um ser humano a ser protegido e zelado, você é uma cifra que incomoda. Eles te deram a palavra do Estado, te garantiram a vida. Mas botaram em discussão mais uma vez o único remédio que existe para o seu filho. Eles podem. Você nunca desejou tanto uma paz que não seja frágil. Não sabia a importância que isso tinha até perder por completo qualquer tipo de paz. Você vai sonhar com seu filho amado morto, todas as noites. Congelado da falta de vida. Você vai acordar suado pedindo um pouco de humanidade. Um pouco de dignidade. Você vai pedir por amor. Vai desejar um mundo melhor. Você vai abraçar seu filho tentando esconder a dor. A preocupação. A insônia. A revolta. A morte que você morre todos os dias a conta gotas enquanto pensa na possibilidade de perdê-lo. Você vai se sentir pequenininho. Minúsculo. Você vai ser
quase nada.
Nesse momento eu te traria de volta, pode ficar tranquilo. Você não iria ficar preso na minha pele. Eu não pretendo me livrar dela assim. Não trocaria com você por nenhuma hora a mais. Eu tenho uma preciosidade que dei a vida e o nome, e tudo faz sentido quando ele abre um sorriso de manhã cedo, e com as mãos no meu rosto me diz sem palavras o tamanho do amor que sente. Se você tivesse vivido um dia na minha pele saberia o valor que isso tem. Não seria mais capaz de esquecer estes olhos puxados. Depois de sentir a temperatura do meu sangue, a falta de ar do meu medo, o amor que pulsa em cada pedaço de mim, você saberia. Nunca mais conseguiria me ver como um papel, um número qualquer. Eu seria finalmente gente pra você. Carne digna de compaixão. O meu risco iminente doeria em cada pedaço seu.
A vida é rara para doentes raros. É frágil diante de uma assinatura. É difícil, dolorida e cheia de medo porque qualquer falha pode ser fatal. Doentes raros tem urgência, porque falta tempo para esperar. Faltam possibilidades.
Embaixo da sua pele corre a mesma força vital que me ergue todos os dias. A vida do seu filho não tem preço, e a do meu também não pode ter.
Você não precisa viver um dia na minha pele para saber disso. Precisa?”
João Vicente, o filho da Laura, luta diariamente para reaprender funções básicas da vida, como caminhar e falar. Em 2013, quando tinha apenas um ano e oito meses, o menino foi diagnosticado com uma doença rara, a Síndrome Hemolítica Urêmica atípica (SHUa), que causa problemas no sistema imunológico. Na época, por causa de uma crise repentina, sofreu um AVC, que lhe deixou sequelas graves. Em busca da recuperação do filho, hoje com 5 anos de idade, os pais organizaram a campanha “Avante Leãozinho” para arrecadar fundos e arcar com o alto custo das despesas do tratamento de João. Saiba mais sobre a campanha realizada em 2016 (clique aqui para acessar).
Não deixe que a vida de milhares pessoas com doenças raras no Brasil entre em risco. Assine e divulgue este abaixo assinado, que será entregue no Supremo Tribunal Federal exigindo que as medicações que todos precisam sejam entregues. Nossa vida não tem preço: www.change.org/minhavidanaotempreco
Nota Nota importante: As informações aqui contidas tem cunho estritamente educacional. Em hipótese alguma pretendem substituir a consulta médica, a realização de exames e ou, o tratamento médico. Em caso de dúvidas fale com seu médico, ele poderá esclarecer todas as suas perguntas.